segunda-feira, 23 de maio de 2016

A Longa Viagem de Bento de Góis

Desde dos tempos medievais aos modernos, entre os grandes viajantes europeus que enfrentaram os mais árduos obstáculos, lutando contra o aparente impossível, destaca-se o papel dos missionários que, motivados pelo ímpeto de expansão do cristianismo, deixaram a sua marca na história, devido às suas grandiosas expedições.  Entre estes missionários surge um ilustre jesuíta açoriano, que no inicio século XVII percorreu o caminho da Índia até à China, através da Ásia central. Seu nome: Bento de Góis.
Nascido na Vila Franca do Campo, na ilha de São Miguel, a vida de Bento de Góis continua a ser recheada de dúvidas e mistério. Provavelmente nasceu no ano de 1562, com o nome de Luís Gonçalves, como aponta uma certidão de baptismo da sua vila natal, publicada em 1903 no jornal “A Liberdade”. O motivo da sua partida para a Índia, em 1583, é também envolto de várias teorias: José Torres, em 1854, foi um dos que romanceia uma história onde Bento de Góis teria partido devido a um amor não correspondido que o teria forçado a abandonar a sua terra natal; há, também, quem defenda que, enquanto soldado teria sido destacado para a Índia; havendo ainda quem sugere que o domínio espanhol sobre Portugal, que causou revolta em Vila Franca, onde até foram enforcados inimigos e onde, segundo a Profª Margarida Vaz do Rego, se realizavam “grandes preces na igreja Matriz”, fosse fundamental para o vila-franquense ter abandonado a sua pátria. Certo é que partiu para a Indía como soldado e que aí chegado, aos 26 anos, pediu ingresso na Companhia de Jesus como simples Irmão. A viagem que viria a operar é proporcionada pelo ambiente de dúvida que rodeava o território asiático de Cataio, motivado, em grande parte, pelos relatos fantásticos de vários exploradores, como Frei Giovani di Carpine, no século XIII, e principalmente pelo de Marco Polo, no final do mesmo século, onde Cataio se transformou rapidamente numa das maiores referência míticas europeias dos finais da Idade Média. Os jesuítas de Goa pretendiam, assim, averiguar a existência do território, para, sobretudo, e em caso de confirmação da existência, analisar a sua potencialidade para a expansão da fé cristã, havendo, até, rumores que acreditavam na existência de uma comunidade cristã-nestoriana no reino de Cataio. Desta forma, Bento de Góis foi o homem escolhido para levar a cabo tão espinhosa empresa, que apresentava-se tão árdua quanto decisiva para o futuro das missões jesuítas no Oriente. A escolha justificou-se, como apresentou António de Gouvea, em Àsia Extrema, devido á sua forte religiosidade, junto de uma apurada sensibilidade e um vasto conhecimento das línguas nativas e dos costumes das regiões. Gouvea também refere que os preparativos da viagem incidiram sobre o juntamento de mercadorias que garantissem o devido alimento e na ocultação da verdadeira identidade de Bento de Góis, quer através da mudança do seu aspeto físico, quer na adoção de um pseudónimo que garantisse a sua segurança. Esta transfiguração da identidade visava a camuflagem do viajante de forma a que este se enquadrasse no ambiente dos territórios, de forma a não ser reconhecido como estrangeiro, evitando, assim, os riscos que tal situação comportaria. Bento de Góis, numa carta datada de 30 de Dezembro de 1602, enviada desde de Laoro até Goa para o Vice-Provincial da Companhia de Jesus, refere que despiu a “roupeta que trazia, para vestir os trajes da terra”, informando também que ia “negociando com o título de mercador” e que “para mais dissumulação” andava com “uma barba pelos peitos e o cabelo comprido conforme o costume da terra”. É precisamente a cidade de Laoro, no reino de Magor, que marca o início da viagem de Góis, pela altura da Quaresma do ano de 1602. Além de todo o esforço físico que um itinerário desta dimensão acarreta, durante a viagem o explorador teve de enfrentar muitos outros obstáculos, principalmente devido aos conflitos nos múltiplos reinos por onde passou, da necessidade de ultrapassar grandes cadeias montanhosas, como Pamires e o Caracórum, e extensos desertos, como o Grande Deserto de Góbi, enfrentando, também, na sua maioria, territórios muçulmanos que não aceitavam o aparecimento de cristãos nas suas comunidades.
O térmito da sua odisseia acontece em 1605, já dentro das muralhas da China, na cidade de Só Cheu (ou Chou-Tcheou). Desta forma, e segundo o Professor Luís de Albuquerque, estima-se que Bento de Góis percorreu cerca de quatro mil quilómetros, numa rota que percorreu de Laore a Cabul (actual capital do Afeganistão), até Ircanda (território no Turquestão Oriental), passando por Chalis, Turfan, pelo deserto de Góbi até transpor as Grandes Muralhas da China, três anos depois de ter partido. Por esta altura, Bento de Góis já se teria apercebido, por saber de experiência feito, que o tão desejado reino de Cataio era, afinal, a China onde já se encontrava, numa descoberta que alterou significativamente a conceção do mundo à altura. Foi o fim dos mitos de Cataio e de Preste João do Oriente que durante séculos fustigaram o imaginário europeu, com mitos fantásticos acerca do oriente desconhecido. Foi também graças à exploração de Góis que se descobriu que Khambalaik, de Marco Polo, era, efetivamente, a cidade de Pequim. Acabou por morrer em 1607, na última cidade assinalada na sua viagem, por motivos ainda desconhecidos. Certo é que encontrava-se doente, tendo ainda enviado uma carta a pedir auxílio ao Padre Matteo Ricci (que viria a ser o grande impulsionar da publicação dos registos da sua viagem), provavelmente por ter sido atacado, assaltado ou envenenado - a suspeita de envenenamento por companheiros árabes é sustentada com a destruição do diário onde Góis anotava tudo, numa tentativa de esconder as dívidas para com ele contraídas.
Apesar da dificuldade na exatidão e no rigor histórico, fica, desta forma, apresentada de forma breve, uma das mais fascinantes e importantes viagens da historiografia mundial. Protagonizada por um Açoriano, que enfrentou o desconhecido, contribuindo para a noção do mundo como a que temos hoje.

Trabalho realizado no âmbito da cadeira de Literatura de Viagens