Desde
dos tempos medievais aos modernos, entre os grandes viajantes
europeus que enfrentaram os mais árduos obstáculos, lutando contra
o aparente impossível, destaca-se o papel dos missionários que,
motivados pelo ímpeto de expansão do cristianismo, deixaram a sua
marca na história, devido às suas grandiosas expedições. Entre
estes missionários surge um ilustre jesuíta
açoriano, que no inicio século XVII percorreu o caminho da Índia até à
China, através da Ásia central. Seu nome: Bento de Góis.
Nascido na Vila Franca do Campo, na ilha de São Miguel, a vida de
Bento de Góis continua a ser recheada de dúvidas e mistério.
Provavelmente nasceu no ano de 1562, com o nome de Luís Gonçalves,
como aponta uma certidão de baptismo da sua vila natal, publicada em
1903 no jornal “A Liberdade”. O motivo da sua partida para a
Índia, em 1583, é também envolto de várias teorias: José Torres,
em 1854, foi um dos que romanceia uma história onde Bento de Góis
teria partido devido a um amor não correspondido que o
teria forçado a abandonar a sua terra natal; há, também, quem
defenda que, enquanto soldado teria sido destacado para a Índia;
havendo ainda quem sugere que o domínio espanhol sobre Portugal, que
causou revolta em Vila Franca, onde até foram enforcados inimigos e
onde, segundo a Profª Margarida Vaz do Rego, se realizavam “grandes
preces na igreja Matriz”, fosse fundamental para o vila-franquense
ter abandonado a sua pátria. Certo é que partiu para a Indía como
soldado e que aí chegado, aos 26 anos, pediu ingresso na Companhia
de Jesus como simples Irmão. A viagem que viria a operar é
proporcionada pelo ambiente de dúvida que rodeava o território
asiático de Cataio, motivado, em grande parte, pelos relatos
fantásticos de vários exploradores, como Frei Giovani di Carpine,
no século XIII, e principalmente pelo de Marco Polo, no final do
mesmo século, onde Cataio se transformou rapidamente numa das
maiores referência míticas europeias dos finais da Idade Média. Os
jesuítas de Goa pretendiam, assim, averiguar a existência do
território, para, sobretudo, e em caso de confirmação da
existência, analisar a sua potencialidade para a expansão da fé
cristã, havendo, até, rumores que acreditavam na existência de uma
comunidade cristã-nestoriana no reino de Cataio. Desta forma, Bento
de Góis foi o homem escolhido para levar a cabo tão espinhosa
empresa, que apresentava-se tão árdua quanto decisiva para o futuro
das missões jesuítas no Oriente. A escolha justificou-se, como
apresentou António de Gouvea, em
Àsia Extrema, devido á sua
forte religiosidade, junto de uma apurada sensibilidade e um vasto
conhecimento das línguas nativas e dos costumes das regiões. Gouvea
também refere que os preparativos da viagem incidiram sobre o
juntamento de mercadorias que garantissem o devido alimento e na
ocultação da verdadeira identidade de Bento de Góis, quer através
da mudança do seu aspeto físico, quer na adoção de um pseudónimo
que garantisse a sua segurança. Esta transfiguração
da identidade visava a camuflagem do viajante de forma a que este
se enquadrasse no ambiente dos territórios, de forma a não ser
reconhecido como estrangeiro, evitando, assim, os riscos que tal
situação comportaria. Bento de Góis, numa carta datada de 30 de
Dezembro de 1602, enviada desde de Laoro até Goa para o
Vice-Provincial da Companhia de Jesus, refere que despiu a “roupeta
que trazia, para vestir os trajes da terra”, informando também que
ia “negociando com o título de mercador” e que “para mais
dissumulação” andava com “uma barba pelos peitos e o cabelo
comprido conforme o costume da terra”. É precisamente a cidade de
Laoro, no reino de Magor, que marca o início da viagem de Góis,
pela altura da Quaresma do ano de 1602. Além de todo o esforço
físico que um itinerário desta dimensão acarreta, durante a viagem
o explorador teve de enfrentar muitos outros obstáculos,
principalmente devido aos conflitos nos múltiplos reinos por onde
passou, da necessidade de ultrapassar grandes cadeias montanhosas,
como Pamires
e o Caracórum, e
extensos desertos, como o Grande Deserto de Góbi, enfrentando,
também, na sua maioria, territórios muçulmanos que não aceitavam
o aparecimento de cristãos nas suas comunidades.
O térmito da sua odisseia acontece
em 1605, já dentro das muralhas da China, na cidade de Só Cheu (ou
Chou-Tcheou). Desta
forma, e segundo o Professor Luís de Albuquerque, estima-se que
Bento de Góis percorreu cerca de quatro mil quilómetros, numa rota
que percorreu de Laore a Cabul (actual capital do Afeganistão), até
Ircanda (território no Turquestão Oriental), passando por Chalis,
Turfan, pelo deserto de Góbi até transpor as Grandes Muralhas da
China, três anos depois de ter partido. Por esta altura, Bento de
Góis já se teria apercebido, por saber de experiência feito, que o
tão desejado reino de Cataio era, afinal, a China onde já se
encontrava, numa descoberta que alterou significativamente a
conceção do mundo à altura. Foi o fim dos mitos de Cataio e de
Preste João do Oriente que durante séculos fustigaram o imaginário
europeu, com mitos fantásticos acerca do oriente desconhecido. Foi
também graças à exploração de Góis que se descobriu que
Khambalaik,
de Marco Polo, era, efetivamente, a cidade de Pequim. Acabou por
morrer em 1607, na última cidade assinalada na sua viagem, por
motivos ainda desconhecidos. Certo é que encontrava-se doente, tendo
ainda enviado uma carta a pedir auxílio ao Padre Matteo Ricci (que
viria a ser o grande impulsionar da publicação dos registos da sua
viagem), provavelmente por ter sido atacado, assaltado ou envenenado
- a suspeita de envenenamento por companheiros árabes é sustentada
com a destruição do diário onde Góis anotava tudo, numa tentativa
de esconder as dívidas para com ele contraídas.
Apesar da
dificuldade na exatidão e no rigor histórico, fica, desta forma,
apresentada de forma breve, uma das mais fascinantes e importantes
viagens da historiografia mundial. Protagonizada por um Açoriano,
que enfrentou o desconhecido, contribuindo para a noção do mundo
como a que temos hoje.
Trabalho realizado no âmbito da cadeira de Literatura de Viagens